Prometeu Acorrentado


Prometeu ficar acorrentado. O mundo o faria feliz. Pagou um preço alto. Não sabia o que era a felicidade. Imaginou, influenciado pela margarina. Logo, os cientistas disseram que a margarina fazia mal a saúde, e ele estava ali, acorrentado. Não podia voltar no tempo da sua promessa. Não sabia o que esperar de um futuro onde o azeite ainda não estava na moda. Ele gostava de gordura. Era um casal gordo do final do século XIX, acomodado.

Início do século XX, ele prometeu ficar acorrentado, mas sua mulher resolveu fazer regime. Usava espartilhos que cortavam seu ar. Começaram a ter problemas na relação. Um amigo próximo, Freud, aconselhou que fizessem terapia de casal.

Ser feliz é: tomar um lindo café da manhã com a família - pães, ovos, bacon, bolo e suco de laranja. A negra, recém liberta, determinou que tinha que ter café preto e com ele, trouxe o açúcar para a mesa. Ela acreditava na energia do pó, mesmo que branca.

Prometeu estava acorrentado. Esperando pela felicidade que deveria vir de dentro de si, mas até agora só se concentrava no fogão da preta. Sentiu tesão na cozinheira, mas não podia come-la por livre e espontânea vontade. Sua mulher deveria desaparecer.

Seu desejo ganhou fortes esperanças, quando no século XXI as mulheres viraram anoréxicas e morriam de fome. Ele, acorrentado, passou a sonhar que sua mulher definhava enquanto a negra o alimentava na boca com ovos, bacon, bolos e suco de laranja. E a cada ida e vinda de suas andanças pela cozinha, sua bunda enorme invadia seu sonho de ser feliz.

Ser feliz é: não ter mulher, filhos, ser alimentado, enquanto acorrentado, pela Preta, somente sentido prazer.

A mulher morreu de fome. A negra fez um curso de culinária, virou chefe de cozinha e agora só usa azeite. Ele prometeu estar acorrentado esperando um dia encontrar a felicidade, mas o mundo, apesar do tempo, não mudou em nada. A felicidade não existe. Ela é pura diversão. E preso não se diverte…

ESBOÇO DE SAUDADE


A casa era preenchida de coisas. A vida tinha muitas sensações. Quase todas pareciam não ter sentido, pois não foram explicadas na época devida. Mas tinham.

A sala tinha inúmeras prateleiras, coloridas por livros e objetos que certamente fizeram parte daquela vida. Eu só olhava para tantas cores de vida.

Em que momento ele sentiu vontade de pintar sua vida de preto e branco? Por que não foi capaz de entender tal nuance? O mundo, tragicamente, determinou que ser bicolor não tinha graça ou alegria. E logo ele, o mais alegre de todos... Teria feito um mundo novo, sabiam? Colorido de preto e branco, fazendo novas cores a partir destas duas. Cores jamais vistas.

Tento redesenhar sua casa. Uso um lápis fino para não interferir nos seus sentimentos. Mas quanto mais fino, mais profundo, que fere dentro do peito e sangra. 

O sangue como cor. Desta vez, sem alegria. Uma cor com tristeza, como um esboço de saudade.


Purpurina_SP

Este ano consegui viajar no Carnaval.  Mesmo sendo a           trabalho, felizmente, minha missão não foi no Nordeste, e sim em São Paulo, cidade onde parece que a purpurina nunca foi inventada.

Decidi viajar na terça-feira de Carnaval com medo do aeroporto estar lotado na quarta-feira de cinzas. Marquei um vôo cedo para meus hábitos, mas tudo bem, desde que eu saísse do Rio de Janeiro e de toda confusão que envolve a cidade nesta época do ano.

Marquei um taxi no dia anterior para não correr o risco de não conseguir um pela manhã. O taxista chegou pontualmente. Consegui um motorista mudo, o que me ajudou muito naquela hora da manhã. Não gosto de falar logo que acordo. Muito menos com quem não conheço. Eu estava sonada, mas percebi que o banco estava repleto de purpurina. Fiquei preocupada. “Não posso infectar São Paulo com este vírus. Eles não sabem que isto existe!”

Chegamos rápido ao aeroporto. Eu me achava muito esperta, imaginando que o aeroporto estaria vazio, mas eis que a porta se abre e uma multidão surge a minha frente. Várias línguas e sotaques. Seres torrados pelo sol carioca. Gringos com havaianas retornando para casa com ar de quem vai gastar onda no inverno falido da Europa como se tivesse virado brasileiro. Famílias com malas enormes e coloridas. Crianças descabeladas e remelentas. Mulheres com saltos, blusas de paetês e a maldita purpurina brilhando contra mim! Eu precisava fugir.

Fiz rapidamente meu check in e sai para fumar um cigarro tentando encontrar um lugar distante onde eu não tivesse contato com tanta felicidade e alegria. Isolada consegui paz. Mas o sol estava radiante e o céu azul e lembrei que não fui a praia. Que poderia ter ido. Que poderia estar como aquelas pessoas, mas não fui.

Decidi não me deprimir diante da felicidade do senso comum. “Eu simplesmente não gosto, ok?” E com este mantra dirigi-me ao embarque.  Ultrapassei a barreira do arco-íris do verão carioca e caminhei rumo ao último portão do corredor, o R4.

De repente, um silêncio. Olhei ao longe e as mesmas pessoas estranhas falavam e gesticulavam muito. Mas ali onde eu estava tudo era diferente. Ou não! Ali onde eu estava pessoas comuns estavam a minha frente. Calça comprida. Casacos. Homens com laptops. Mulheres com celulares falando baixo. Rostos tensos. Rugas. Sim!  Olhei para a placa e eu estava no R4!

“Embarque do vôo Gol 1931  Rio de Janeiro/São Paulo -  Aeroporto de Congonhas” - dizia a voz calma e costumeira no alto falante do aeroporto. Voltei a respirar. Encontrei meu mundo, meu gueto. Eu poderia morar ali, naquela fila de embarque. Hipnotizada, fui empurrada para dentro do avião, que logo decolou e me levou para bem longe deste lugar onde EU NÃO EXISTO. O Carnaval do Rio de Janeiro.  

Resolvi pegar meu livro que estava guardado na bolsa dentro do bagageiro. Vi uma luz brilhante. Estranho… Era ela, a purpurina, infiltrada na mala do passageiro que viajava ao meu lado. Ele falava espanhol. Certamente, um erro da companhia que invadiu meu avião. Tentei retirar o pontinho achando que estávamos falando de apenas um foco, mas não, a purpurina tinha se alastrado e estava viajando comigo, no mesmo vôo, rumo a São Paulo. 

sentidos


Então eu terminei o inbox do Facebook dizendo que tinha novidades para contar. Achei melhor assim. Hoje em dia, como não escrevemos mais cartas vale mais criar uma expectativa sobre qualquer coisa, pois o que eu ia responder a pergunta feita do “amigo” sobre como eu estou? “Estou bem, trabalhando muito...” É sempre essa a resposta.  Eu poderia completar com um “pago minhas contas, os impostos e falo sozinha”! Mas preferi não completar, pois, os primeiros, são conseqüência do fato de eu ainda ter que trabalhar aos quase 40 anos e que falar sozinha não é socialmente aceitável.
Apesar que todo mundo fala sozinho! Mas se o sujeito fala sozinho, está ali acreditando que ninguém percebe. Confesso que quando vejo alguém falando sozinho na rua, me encanto. Tenho vontade de seguir e entender para onde vai aquela conversa solitária. Infelizmente, com o advento dos fones de celulares, volta e meia me pego seguindo alguém que parece que está falando sozinho, mas está falando no cel via fone.

Mas falar no celular também não é falar sozinho? Já pararam para pensar, ou ouvir qualquer conversa das pessoas no celular? Estou certa que a pessoa do outro lado da linha está fazendo qualquer outra coisa, menos ouvir o que está sendo dito pelo seu interlocutor. Afinal, quem ouve quem hoje em dia?

Tenho a impressão que se parar na praça que liga a Rua México com a Rio Branco, na altura da Cinelândia, e falar sozinha com os mendigos que ali dormem, estes sim irão me ouvir.  Não por nada. Carência talvez. Sou alguém que parou para olhar para eles.  Pois quem olha para eles?

De uma forma geral, quem olha e vê? Alguém te vê? Quem é você afinal? Acho que nem você sabe.

Então, nem posso te contar... São tantas novidades... Trabalho, pago contas, impostos e falo sozinha. Acredito que ninguém me vê falando sozinha. Falo sozinha porque não tenho ninguém para me ouvir.

Seria bom freqüentar a praça e resolver meus problemas de solidão, pena que o cheiro é ruim. Não dos moradores de rua, mas da praça. É impossível parar por lá sem ser defumada ou pelo lixo do fim do dia do Centro do Rio ou pelo churrasquinho que ferve a cada esquina.

Se me resta alguma coisa dos sentidos dos Deuses, posso falar do toque ou do paladar....

Sobre este último, já adianto, almoço e janto sozinha. Nem saboreio a comida, pois tenho que trabalhar muito, para pagar todas as contas, impostos para poder falar sozinha sem ninguém me pedir explicações.

Quanto ao toque. Enfim... após o advento do celular ou mesmo da tecnologia, muitas palavras mudaram de sentido. Toque por exemplo, hoje em dia significa: o toque do seu aparelho de celular – que dependendo do seu grau de solidão, nunca vai tocar, ou o toque do teclado do computador – forma moderna das pessoas se comunicarem para perguntar um breve “como você vai?” e você responder com um evasivo “estou bem, trabalhando muito... tenho novidades...”